terça-feira, 6 de janeiro de 2015

GRADIVA DE JENSEN E OUTROS TRABALHOS, DE SIGMUND FREUD


[...] Até então o sexo feminino não passara para ele de um conceito expresso em mármore ou em bronze, e nunca prestara a menor atenção às suas representantes contemporâneas.
[...] Agora, entretanto, a tarefa científica a que se propusera impelia-o na rua, especialmente nos dias chuvosos, a observar ansiosamente os pés de todas as mulheres que encontrava, atividade que lhe granjeava olhares ora indignados, ora encorajadores dos objetos de sua observação, ‘mas ele não percebia nem uns, nem outros’. (10.) Essa pesquisa meticulosa levou-o a concluir que o modo de andar de Gradiva não era encontrável na realidade, o que o encheu de desânimo e consternação.
[...] Chegou à conclusão de que, de todas as loucuras da humanidade, ‘o casamento é a maior e a mais incompreensível, sendo o ápice dessa imbecilidade aquelas despropositadas viagens de núpcias à Itália.
[...] Para a construção de um sonho não é essencial um vínculo com um estímulo sensorial externo. Aquele que dorme pode ignorar um estímulo desse gênero a partir do mundo externo, pode ser despertado pelo mesmo sem construir um sonho, ou, como aconteceu aqui, pode incorporá-lo a seu sonho, se isto lhe convier por alguma razão. Além disso, existem inúmeros sonhos cujo conteúdo de forma alguma pode ser explicado como sendo determinado por um estímulo externo sobre os sentidos do indivíduo que dorme.
[...] Nos cinco anos que decorreram desde o término deste estudo, a investigação psicanalítica encorajou-se a examinar as criações dos escritos imaginativos tendo em vista outro propósito. Não mais procura nelas somente uma confirmação das descobertas feitas em seres humanos neuróticos e banais; também quer conhecer o material de lembranças e impressões no qual o autor baseou a obra, e os métodos e processos pelos quais converteu esse material em obra de arte. Essas perguntas podem ser respondidas com maior facilidade no caso de escritores que (como Wilhelm Jensen, falecido em 1911) costumavam entregar-se inteiramente à sua imaginação pela simples alegria de criar. Pouco depois da publicação do meu exame analítico de Gradiva, tentei interessar seu idoso autor por essas novas tarefas da pesquisa psicanalítica. Ele, porém, recusou sua cooperação.
[...] Não sou certamente o primeiro a notar a semelhança existente entre os chamados atos obsessivos dos que sofrem de afecções venosas e as práticas pelas quais o crente expressa sua devoção. O termo ‘cerimonial’, que tem sido aplicado a alguns desses atos obsessivos, constitui uma evidência disso. Em minha opinião, entretanto, essa semelhança não é apenas superficial, de modo que a compreensão interna (insight) da origem do cerimonial neurótico pode, por analogia, estimular-nos a estabelecer inferências sobre os processos psicológicos da vida religiosa. As pessoas que praticam atos obsessivos ou cerimoniais pertencem à mesma classe das que sofrem de pensamento obsessivo, ideias obsessivas, impulsos obsessivos e afins. Isso, em conjunto, constitui uma entidade clínica especial, que comumente se denomina de ‘neurose obsessiva
[...] Uma mulher que estava vivendo separada do marido via-se sob a compulsão de deixar intacta a melhor porção de tudo aquilo que comia: por exemplo, só aproveitava as beiradas de uma fatia de carne assada. A explicação dessa renúncia foi encontrada por meio da data de sua origem. Ela surgiu no dia seguinte àquele em que se recusara a ter relações maritais com seu marido - isto é, após ter renunciado ao melhor.
[...] O escritor suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas fantasias. Denominamos de prêmio de estímulo ou de prazer preliminar ao prazer desse gênero, que nos é oferecido para possibilitar a liberação de um prazer ainda maior, proveniente de fontes psíquicas mais profundas. Em minha opinião, todo prazer estético que o escritor criativo nos proporciona é da mesma natureza desse prazer preliminar, e a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária procede de uma libertação de tensões em nossas mentes. Talvez até grande parte desse efeito seja devida à possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha. Isso nos leva ao limiar de novas e complexas investigações, mas também, pelo menos no momento, ao fim deste exame.
[...] Pedem-me que faça uma relação de ‘dez bons livros’ sem a tal acrescentarem maiores explicações. Cabe-me assim não somente a escolha dos livros, mas também a interpretação do pedido. Como estou acostumado a dar atenção a pequenos sinais, devo basear-me na forma como esse enigmático pedido foi expresso. Não me solicitaram ‘os dez mais esplêndidos livros (da literatura mundial)’, quando eu seria obrigado a responder, como tantos outros: Homero, as tragédias de Sófocles, o Fausto de Goethe, o Hamlet e o Macbeth de Shakespeare, etc. Nem me pediram ‘os dez livros mais significativos’, entre os quais teriam de ser incluídas as realizações científicas de Copérnico, do velho médico Johann Weier sobre a crença nas bruxas, a Descendência do Homem de Darwin, e outros. Nem falaram em ‘livros favoritos’, entre os quais eu não teria esquecido O Paraíso Perdido de Milton e o Lázaro de Heine. Parece-me pairar uma ênfase especial sobre o adjetivo ‘bons’, em sua frase, e com isso pretenderem os senhores designar aqueles livros que se assemelham a ‘bons’ amigos, aos quais devemos uma parcela do nosso conhecimento da vida e de nossa visão do mundo - livros que nos deram prazer e que recomendamos de bom grado a outros, mas que não nos despertam uma particular e tímida reverência, nem uma sensação de pequenez diante de sua grandiosidade. Indicarei, portanto, dez ‘bons’ livros que me vieram à mente sem muita reflexão. Multatuli, Cartas e Obras. Kipling, Jungle Book. Anatole France, Sur la pierre blanche. Zola, Fécondité. Merezhkovsky, Leonardo da Vinci. G. Keller, Leute von Seldwyla. C. F. Meyer, Huttens letzte Tage. Macaulay, Essays. Gomperz, Griechische Denker. Mark Twain, Sketches. Não sei o que pretendem fazer com essa lista.
 

GRADIVA DE JENSEN - Na Obra Gradiva de Jensen e outros trabalhos, de Sigmund Freud, é tratado acerca dos delírios e sonho do conto Gradiva de Wilhelm Jensen, sobre uma escultura - Gradiva, a jovem que avança -, que o arqueólogo Norbert Hanold sonha e tem delírios, abordando ainda sobre os delírios e os ditúrbios mentais e o método analítico de psicoterapia. Em seguida vem a parte de pós-escrito acerca do tema proposto e outros trabalhos como a psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos, atos obsessivos e práticas religiosas e o esclarecimento sexual das crianças. O ensaio Escritores criativos e devaneio, aborda sobre Ariosto, o brincar da criança e o escritor criativo, o fantasiar e os romances de Zola. Depois vem os ensaios sobre as fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade, o caráter e o erotismo anal, moral sexual civilizada e doença nervosa moderna, sobre as teorias sexuais da criança, algumas observações gerais sobre ataques histéricos, romances familiares e breves escritos sobre os melhores livros indicados por Freud. 


REFERÊNCIA
FREUD, Sigmund. Gradiva de Jensen e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1980.

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